terça-feira, 3 de maio de 2011

«Meu Amor, a História» de Fisko (crítica)

«Meu, podias escrever aí umas palavras sobre o meu disco, hein?». Estes podiam ser eventualmente os termos em que Fisko se dirigia a mim, já que ele lançou há pouco um EP e, na verdade, ele é um dos melhores e mais estimados amigos que fiz por via do Hip Hop. Porém, Fisko não me pediu absolutamente nada. A vontade de apoiar o seu trabalho partiu do HIPHOPulsação. O desejo de fazer uma crítica a “Meu Amor, a História” partiu de mim. Fisko merece que se fale nele porque até agora tem tido iniciativas dentro do Hip Hop que têm feito os outros brilhar, inovando e consolidando igualmente este nosso movimento. Portanto, nada mais justo aflorar agora um projecto seu, em nome individual.

Sabendo-se que é um EP instrumental com o título “Meu Amor, a História” é inevitável a comparação com “Beats Vol.1: Amor” de Sam The Kid. Inevitável porque ambos são produtores, porque ambos trataram a mesma temática, porque Fisko e Sam The Kid usam e abusam (ainda bem!) de samples de voz em língua lusa.

Corre, em “Meu Amor, a História”, a ânsia de se explicar e descrever o poder do amor, ou seja, a grande batida da vida. Implicitamente à palavra “amor” está o conceito de beleza. É estranho e inconsistente pensarmos num amor feio. Não há, não deve haver. Desde logo, se na obra de Fisko se procura elevar a grandeza do amor é tanto mais previsível que o resultado seja agradável.

A música é um meio privilegiado, um óptimo e eficiente veículo, para a consagração e expressão do amor. Fisko seguiu essa dica e ousou contar a sua história através da música. Se no amor se deseja buscar a intensificação da vida, na mais clássica forma de beleza, também na música essa pretensão é indissociável. É mais do que uma premissa. Não há amor sem se ter sentimentos, não há capacidade para se fazer música ou apreciá-la simplesmente se não estiverem desenvolvidas no nosso âmago as faculdades do sentir. É precisamente disto que trata este EP: de sentir. De se entrar na intimidade de Fisko, de se saber a dimensão do seu “amo-te”, de se vasculhar o seu coração como as páginas dum livro com letras sensíveis. É aqui que abrimos a gaveta da sua alma.

Este é o manifesto reiterado na «Intro», que se amplifica no fantástico sample de voz que nos lembra que o amor não é como o dinheiro. Enquanto que se muito amor oferecermos, mais amor teremos, o dinheiro evapora-se num ápice. Mais se pode acrescentar que não há dinheiro nenhum que possa comprar amor. Do verdadeiro, claro. Tudo isto plasmado numa atmosfera instrumental que nos transporta para um jardim, onde uma fonte, no centro, debita jactos de água límpida, e onde a nossa amada divertida refresca o corpo, sorrindo para nós devido ao nosso ar embevecido.

Quando o Cupido nos atinge, é aí que despertamos e damos o «Bom Dia» para a vida. É quando saltamos dos lençóis da normalidade, espreguiçamos o tédio, abrimos a janela, inspiramos o ar fresco da competência para amar e já está. O sol brilha, os pássaros cantam, raia a beleza. Principiam as revelações, as promessas, a frontalidade, a sinceridade e transparência. A felicidade que vem da partilha. O medo que se desvanece perante a imponência da mais-que-tudo. A confiança que cresce, o prazer que não se esgota, a alegria, a convicção do amor, a força da paixão... Com isto, como não nos levantarmos da cama?!

Nem tudo são rosas, dirão os menos românticos e mais realistas. Certo. E que sentimento mais característico dos portugueses que a «Saudade»? O desconforto nos momentos de ausência, a melancolia, o tempo que pára, que se suspende num cubo de gelo ou no bronze duma estátua, maximizado no beat de Fisko pelos violinos que arrepiam a espinha e onde os ossos da alma rangem devido às cordas. O interior de nós mesmos entra em soturnidade, na espera do triunfalismo do reencontro, que é um brutal «Aperitivo», poder-se-ia dizer. Apetece saciar a fome de amor através dos sorrisos, do encaixe perfeito dos corpos, nos abraços na praia, nas brincadeiras no jardim, no apertar das mãos, na colisão das bocas prometidas. A união perfeita... Que venha, que venha ela.

Se o sol quando nasce é para todos, «Quando Chove» ninguém escapa, não há quem drible todas as gotas de água. Se até os deuses vertem lágrimas, às quais chamamos chuva, também nós lubrificamos por meio de cascatas de água salgada o rosto, de quando em vez. Assim acontece quando a impotência se infiltra no nosso espírito, quando derrapamos nalgum erro, quando fica algo por dizer. O amor vence tudo, mas há dias em que as forças falham, em que não se reúnem as condições para o deleite conjugal. Momento que pede a reflexão. Como num dia cinzento, em que o olhar se posiciona longínquo da Serra do Pilar para o Douro. Era como se quiséssemos chorar todo aquele rio para o mar, a fim de nos levar todas as tristezas e obstáculos nocivos à felicidade.

A teimosia da «Chuva (Quando Parte)» pode levar a pensar-se que existe um qualquer fado comum aos portugueses a tolher a nossa vida. Talvez seja um pensamento exagerado. A melhor opção será sempre desdramatizar-se a situação. Porém, no exercício de nos pormos à janela a ver a chuva cair poderemos retirar algumas ilações, pensando na nossa existência. O que deve contar nessa retrospectiva empreendida é sabermos da inevitabilidade dos temporais, com certeza, mas nunca esquecermos que também existiram dias lindos, em que o sol foi radioso. Serão essas as lembranças que dirão que a vida vale a pena. Os momentos especiais, as pessoas que nos marcaram, as situações que nos emocionaram, porque isto é que dá vida à saudade.

Se a racionalidade se divorciou de nós e o que ficou foi a «Loucura», ou se fica preso na obsessão do passado, em regime punitivo, ou se desencadeia a revolução do espírito, em que a dor vira bandeira para a mudança, para um outro rumo. “Não podia ir embora sentindo o que sentia”, diz-se em «Sinto-te Aqui». É perfeitamente compreensível. Só quem não ama é que desiste. Todavia, nem sempre amar é sinónimo de se estar junto. Por isso, pode sentir-se aqui, ali, acolá, além. Longe ou perto. São as diferentes faces do amor, são as diferentes faces do sentir.

Em cada história, dificilmente uma personagem não sofre transformações. Para o bem e para o mal, há um «Outro» que nasce fruto dos desenvolvimentos anteriores. Também Fisko trilhará os seus passos a meio caminho das saudades e do devir. Não se renega o passado, procura-se antes que ele seja útil para o futuro. As portas abrem-se para outras coisas, para outros... amores.

O que temos em “Meu Amor, a História” de Fisko é a tradução musical duma sua experiência amorosa. Sente-se uma música muito humana, natural, à flor da pele, em todo o EP. Há aqui também uma portugalidade inerente, uma identidade que se ouve nas vozes de Mariza, de Mário Viegas ou de António Lobo Antunes, por exemplo. Enquanto produtor, Fisko preocupa-se bastante com a melodia, com a harmonia e não se lhe nota o preconceito de samplar coisas menos convencionais, o que acho muito meritório. Nota-se que segue uma linha de produção muito própria, sem que sinta a necessidade de se colar a um estilo vigente. O seu amor pela música é a nota dominante, numa estreia promissora. Esta é a história de Fisko, mas podia ser perfeitamente a história de qualquer um de nós. A ti, meu amigo Fisko, dedico-te todas estas palavras. Todavia, não o faço pela amizade que nos une. Faço-o porque o teu talento assim mo exige.

4 comentários:

  1. sao cenas destas q fazem falta ao nosso hip hop! mega congratz ao fisko!!

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  2. Eu achei os beatz mt parecidos com os do sam the kid mo "Beats volume 1 Amor" até na sonoridade...

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  3. Excelente critica Druco. Aprecio muito ler os teus textos. É um dom que te ''invejo'' um bocadinho ;)

    Parabens!

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  4. Anónimo, é mesmo isso, o Fisko está de parabéns!

    Anónimo2, de facto pensamos logo na cena do Sam quando ouvimos este projecto do Fisko. Eu acho que só isso é um grande elogio ao trabalho do Fisko.

    Andreia, obrigado! :) Ainda bem que curtes ler as minhas cenas, fico muito contente com isso ;D É o que dá eu adorar escrever e depois encontrar música inspiradora que me ajuda a elevar o nível da minha escrita e que me permite ir mais além ;) Não acho que tenha dom algum xD É mais o gosto de escrever aliado à práctica da cena ;P

    Cumprimentos!

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