O rap de J-K é o habitáculo dos proscritos. A sua música é o elogio do sociopatismo que borbulha em cada um de nós. À deriva no mundo, aborta a missão de nele se integrar. Periférico que prefere orbitar num planeta ao lado. O seu. Livre do compromisso social, não tece afinidades com a hipocrisia, a falsidade ou a formatação. O mundo, a vida, para J-K não é nada mais nada menos do que um circo, um parque de diversões, o palco dum mágico, uma mesa de poker, mesmo a preceito para um valente bluff! É disso que se trata: o brilho ilusório que nos encandeia.
Tempestade verbal. Salpicos de soturnidade ecoam nas rimas, apesar do revestimento sonoro maioritariamente positivista. Talvez porque em J-K nem só a instrumentalização viva de esperança. Jota atira rimas como quem lança “bolas de fogo”, incandescentes jactos de impetuosidade, contra a cara de quem ouse zombar das suas... meias com raquetes. Mas ele é também o recém-adulto que – arrisco – guarda ainda as cinzas do seu caderno de “puto revoltado”. Ou seja, a rebeldia adolescente incorporada num corpo de adulto, ainda que sustentada em resíduos cremados, pode simbolizar as tais “duas sementes brancas” que renascerão como a esperança de se ser alguém melhor, com um «propósito maior». Para isso, basta activar-se o “íman” que cada um carrega no seu coração para que se facilite o encontro com o outro lado, viveiro de humanidade quente onde está instaurado o não-tempo.
Vive-se um Outono permanente. O Verão vai-se e o sonho não recebe injecção suficiente de raios ultra-violeta do sol, o fluxo de vitamina D é escasso e, por conseguinte, o sonho não frutifica. Com casca verde, forte, e sumo inquinado, agora só o desalento empurra J-K no baloiço chiante. Um fogacho aceso não queima as mãos, alimenta-as. Mas logo logo tudo é fumo sem fogo.
O sonho hiberna. Pensar dói. Se alguém fizer uma oferta financeira maior, já não se compra nem o sol nem a lua. Como respirar então? Viver mais um minuto é perder mais 60 segundos de vida. Vêm as visões lúgubres, desfiadas, as intermitências da morte, o regresso à tona pelo vómito da alma... e da cachaça. Adia-se o inevitável. J-K atravessa por tudo isto e sabe como são estéreis os auxílios médicos perante todas as ausências. A solução é organizar, com Stray, um festim trágico-cómico e dar-se o K.O. definitivo na vida. A não ser que o Amor atenda o telefone, não é?
Até que era uma boa ideia matar-se o tédio assassinando o prédio. Mas depois seria inevitável a culpa. É certo que a incansável vigilância da consciência, que traça radiografias, pode reprimir o indivíduo. Mas mesmo aí tem de se avaliar a “perspectiva”. E ela tem de flutuar de acordo com a nossa conveniência. Ora, não beneficiava nada o Jota Kapa ser preso por matar o prédio (e não o pai, atenção!) se nele emergem qualidades que o tornam importante. «Rasgar batidas com frases imperfeitas/ Até o mundo respeitar as nossas caras feias». Rima da semana, com pitada de humildade e determinação? “Não sou cínico, só guardo tudo cá dentro/ Fiz uma barreira de cimento entre a expressão e o pensamento”. Rima do mês, com brilhantismo em potência, inventividade e qualidade certificadas? Sem focar a ironia, a densidade, a intensidade, as alucinações saudáveis, catárticas, a coragem, a profundidade. Tudo explanado por J-K, sob batidas de muito bom gosto e que bem complementaram e desafiaram até o rapper. Refiro-me à luminosidade de alguns instrumentais que assim contrastaram com o tom nublado de J-K, resultando daí um interessante e primoroso encaixe. Maestro lírico, talvez incompreendido, mas que é simpático pelo convite que nos faz.
- Se estiveres por cá, fala comigo, toma um chá, adjectiva, relativiza, verbaliza à tua vontade, ya?! Vamos pegar nas situações e brincar com elas. Dialogar, no fundo, é abrir mais janelas.
- É abrir janelas e criar travessões também.
- Escolhi viver da bruma, definido na indefinição...
- Fixe, eu escolhi viver da sombra, construído na destruição.
- Isto não é tipo carpe diem no hi5 dos putos...
- Eu sei, eu também pugnava verdadeiramente o otium cum dignitate no meu ex-hi5 de adulto!
- Sou um gajo alienado passo a vida a ler Pessoa...
- Eu entendo. Também eu queria ser um gajo livre e viajado lendo Fernão Mendes Pinto...
- Sou um modelo caro que no momento-chave não funciona!... Desculpa, acho que me exaltei, eu pago-te essa bebida, não percebi que a entornei.
- Na boa, está tudo bem. A propósito, ouvi o teu “Complexo de Inferioridade” e gostei porque...
(Nota: a conversa foi abruptamente interrompida e não teve continuidade porque entretanto o J-K desatou a correr atrás do Jinx porque este roubou-lhe o chá e o whisky. Mas no essencial acho que está tudo dito.)