sábado, 28 de novembro de 2009

J-K: Complexo de Inferioridade (Crítica)

J-K exibe o seu “Complexo de Inferioridade”, despegado de convenções. Ensarilhando-se por uma linha mais alternativa, obriga-nos a mais do que uma audição para nos sintonizarmos na frequência certa da sua voz. Para não perdermos o fio à meada, é bom que os nossos satélites sejam fiáveis, de modo a captarem bem o âmago cerebral de J-K. Com o corpo entre a Sertã e Lisboa e essencialmente com o espírito cheio de ligações à máfia da ubiquidade, era de prever que o Jinx se cruzasse com ele e lhe prestasse a bênção para uma edição discográfica.

O rap de J-K é o habitáculo dos proscritos. A sua música é o elogio do sociopatismo que borbulha em cada um de nós. À deriva no mundo, aborta a missão de nele se integrar. Periférico que prefere orbitar num planeta ao lado. O seu. Livre do compromisso social, não tece afinidades com a hipocrisia, a falsidade ou a formatação. O mundo, a vida, para J-K não é nada mais nada menos do que um circo, um parque de diversões, o palco dum mágico, uma mesa de poker, mesmo a preceito para um valente bluff! É disso que se trata: o brilho ilusório que nos encandeia.

Tempestade verbal. Salpicos de soturnidade ecoam nas rimas, apesar do revestimento sonoro maioritariamente positivista. Talvez porque em J-K nem só a instrumentalização viva de esperança. Jota atira rimas como quem lança “bolas de fogo”, incandescentes jactos de impetuosidade, contra a cara de quem ouse zombar das suas... meias com raquetes. Mas ele é também o recém-adulto que – arrisco – guarda ainda as cinzas do seu caderno de “puto revoltado”. Ou seja, a rebeldia adolescente incorporada num corpo de adulto, ainda que sustentada em resíduos cremados, pode simbolizar as tais “duas sementes brancas” que renascerão como a esperança de se ser alguém melhor, com um «propósito maior». Para isso, basta activar-se o “íman” que cada um carrega no seu coração para que se facilite o encontro com o outro lado, viveiro de humanidade quente onde está instaurado o não-tempo.

Vive-se um Outono permanente. O Verão vai-se e o sonho não recebe injecção suficiente de raios ultra-violeta do sol, o fluxo de vitamina D é escasso e, por conseguinte, o sonho não frutifica. Com casca verde, forte, e sumo inquinado, agora só o desalento empurra J-K no baloiço chiante. Um fogacho aceso não queima as mãos, alimenta-as. Mas logo logo tudo é fumo sem fogo.

O sonho hiberna. Pensar dói. Se alguém fizer uma oferta financeira maior, já não se compra nem o sol nem a lua. Como respirar então? Viver mais um minuto é perder mais 60 segundos de vida. Vêm as visões lúgubres, desfiadas, as intermitências da morte, o regresso à tona pelo vómito da alma... e da cachaça. Adia-se o inevitável. J-K atravessa por tudo isto e sabe como são estéreis os auxílios médicos perante todas as ausências. A solução é organizar, com Stray, um festim trágico-cómico e dar-se o K.O. definitivo na vida. A não ser que o Amor atenda o telefone, não é?

Até que era uma boa ideia matar-se o tédio assassinando o prédio. Mas depois seria inevitável a culpa. É certo que a incansável vigilância da consciência, que traça radiografias, pode reprimir o indivíduo. Mas mesmo aí tem de se avaliar a “perspectiva”. E ela tem de flutuar de acordo com a nossa conveniência. Ora, não beneficiava nada o Jota Kapa ser preso por matar o prédio (e não o pai, atenção!) se nele emergem qualidades que o tornam importante. «Rasgar batidas com frases imperfeitas/ Até o mundo respeitar as nossas caras feias». Rima da semana, com pitada de humildade e determinação? “Não sou cínico, só guardo tudo cá dentro/ Fiz uma barreira de cimento entre a expressão e o pensamento”. Rima do mês, com brilhantismo em potência, inventividade e qualidade certificadas? Sem focar a ironia, a densidade, a intensidade, as alucinações saudáveis, catárticas, a coragem, a profundidade. Tudo explanado por J-K, sob batidas de muito bom gosto e que bem complementaram e desafiaram até o rapper. Refiro-me à luminosidade de alguns instrumentais que assim contrastaram com o tom nublado de J-K, resultando daí um interessante e primoroso encaixe. Maestro lírico, talvez incompreendido, mas que é simpático pelo convite que nos faz.

- Se estiveres por cá, fala comigo, toma um chá, adjectiva, relativiza, verbaliza à tua vontade, ya?! Vamos pegar nas situações e brincar com elas. Dialogar, no fundo, é abrir mais janelas.

- É abrir janelas e criar travessões também.

- Escolhi viver da bruma, definido na indefinição...

- Fixe, eu escolhi viver da sombra, construído na destruição.

- Isto não é tipo carpe diem no hi5 dos putos...

- Eu sei, eu também pugnava verdadeiramente o otium cum dignitate no meu ex-hi5 de adulto!

- Sou um gajo alienado passo a vida a ler Pessoa...

- Eu entendo. Também eu queria ser um gajo livre e viajado lendo Fernão Mendes Pinto...

- Sou um modelo caro que no momento-chave não funciona!... Desculpa, acho que me exaltei, eu pago-te essa bebida, não percebi que a entornei.

- Na boa, está tudo bem. A propósito, ouvi o teu “Complexo de Inferioridade” e gostei porque...

(Nota: a conversa foi abruptamente interrompida e não teve continuidade porque entretanto o J-K desatou a correr atrás do Jinx porque este roubou-lhe o chá e o whisky. Mas no essencial acho que está tudo dito.)

7 comentários:

  1. Brilhante, como sempre, Druco! Grande abraço!!

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  2. Porra, nah, palmas para vocês. Ter um trabalho a ser criticado por vocês é honra! Porque aqui trabalha-se e bem! Continuem familia!!!

    KUTZZZZZZ!!!!!

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  3. muito bom.
    voces trabalham bem!
    abraço
    spark

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  4. Pessoal, agradeço os vossos comentários.

    J-K, muitos parabéns! Quando se repete a audição do EP descobre-se sempre algo de novo que as escutas anteriores não deslindaram. A maior das forças para os teus projectos!

    Abraços.

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  5. Que grande texto Druco!

    Agora já me posso reformar sem peso na consciência e com a certeza que a crítica musical de Hip Hop fica em boas mãos.

    E sem dúvida que o álbum do J-K merecia uma crítica assim. Congrats!

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  6. Olá, Joana!

    Fico extremamente contente por teres gostado do texto! Obrigado.

    Ei, nem digas isso a brincar! Mesmo que andes muito ocupada por agora, espero que, mais adiante, consigas arranjar tempo para continuares a escrever sobre Hip Hop. Tu és das pessoas que eu mais admiro no cumprimento dessa função. ;)

    Muito forte o EP do J-K, sem dúvida.

    Fica bem, Joana.

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