
Mind da Gap está de volta às lides discográficas com o álbum “A Essência”, que tem etiqueta da
Meifumado e conta ainda com o apoio da
Antena3. É o regresso de uma das bandas históricas do rap português que, ao longo do tempo, muito tem ajudado a alicerçar a cultura Hip Hop no nosso território. Ace, Presto e Serial continuam determinados em fazer viver saudavelmente a cultura que representam. “A Essência” é a prova disso.
O disco inicia com o tema “Só Pra Ti” dedicado àqueles que se sintonizam, tal como Mind da Gap, no modo alternativo, já que é aí que encontram um significado real para as suas vidas. Segundo o grupo, a felicidade brota de se ser original, de se escolher a direcção e de se ter a coragem de se lhe manter fiel. Serial brinda-nos com uma deliciosa ambiência capaz de nos fazer furar as nuvens e de nos colocar no pico de uma estrela.
Se o Hip Hop é um movimento, então este “Não Pára”. Celebra-se aqui a cultura e realça-se a sua vitalidade e solidez, devido aos muitos guerreiros que lutam por ela e que honradamente a defendem. Em todos os elementos, ainda há muito para criar e por explorar. A missão está traçada e o troféu é a evolução. A participação de Valete, nesta faixa, transforma-a num autêntico morteiro para os odiosos do Hip Hop. Na verdade, Valete acentua a grande ironia e a factual mudança que ocorreu na sociedade portuguesa e que se verifica igualmente no Hip Hop, nomeadamente na forma de ver o movimento e nos preconceitos que foram desfeitos. As palavras de Ace, Presto e Valete, com o auxílio de Serial na MPC, rebentam com qualquer barreira que possa ser colocada ao Hip Hop!
Fica claro que o movimento é um amor de todos os dias. Mas a própria vida também o é. Isso mesmo está explícito no tema “Carpe Diem”, em que se assinala que cada momento nesta Terra deve ser sagrado. Para que vingue a aura celestial, a cabeça é nevrálgica nesse processo, é mesmo a melhor máquina há no mundo. É ela que nos deve impelir para a acção porque o tempo não tem paciência para aguardar por ninguém. Sem dúvida que o trio cultiva em si a inflamação da alma!
Modo de vida, missão em acção... “O Eremita” em plena labuta. Ace empreende uma análise às vicissitudes do escritor de versos, aludindo naturalmente ao elogio do poeta. O entrelaçar de dedos entre os artesãos de rimas e o público pode ser entendido como uma espécie de comemoração espiritual que se reveste do maior simbolismo e da maior solenidade. A batida proveniente das mãos pensantes de Serial é linda, o que faz resplandecer ainda mais esta malha. A vibração conscienciosa indica-nos que o poeta é um ser diferente, especial, sendo prendado com a graça dos deuses.
“Todos os Dias” é uma viagem pelo ritual humano. As dicotomias que nos assaltam, a visão da inesgotável roda do mundo que não pára, o pessimismo que vaza os corações e que fica a comandar as pessoas. Sobre um calmo instrumental, Ace e Presto debitam os seus pensamentos, frisando com maior impacto a exigência para as pessoas colocarem em prática o seu juízo crítico.
O confessionário perfeito afinal não está nas igrejas. Não só para exorcizar fantasmas, aliviar as consciências pelo pecado materializado ou encontrar a paz interior, a música é a via mais directa para falar com Deus. Neste caso, em Mind da Gap, para falar com a deusa. No fundo, esta canção proclama a “Sintonia”, a soma de todos os pedacinhos valorosos, que unidos perfazem um grande bom. Tudo isto explanado em mais uma batida de Serial que nos faz andar em órbita pela galáxia. Demais!
Porque é difícil esquecer quem nos esquece, Mind da Gap aponta o dedo e fala olhos nos olhos a quem promove a futilidade social, ao invés de valorizar quem, de facto, merece. Todavia, o tempo – o grande juiz que decide quem ficará para a posteridade – encarregar-se-á de separar o trigo do joio. “Votados ao Esquecimento” acentua também a mais-valia em se ser politicamente incorrecto em detrimento do ser-se hipócrita e cínico no formalismo pindérico do «sim, senhor».
Na senda dos sons mais introspectivos de MDG surge «Como Conseguem?». Ace e Presto parecem empoleirar-se numa das galerias da Assembleia da República e do alto da sua razão reprovam a falta de decoro de alguns políticos. O questionamento da falta de ética e de consciência são dois cartões vermelhos firmemente exibidos à classe política que, neste tema, fica verdadeiramente com as orelhas a arder!
Mas como a vida não são só chatices, é sempre bom tornear o colapso cerebral através do prazer. “Faço a Festa” é uma demanda do corpo e é um implícito lema de Mind da Gap em concertos. Eles fazem a comemoração em palco como se não houvesse amanhã. Ressuscitada a mente e retemperado o corpo, estão reunidas as condições para penetrarmos fundo no interior do coração. A propriedade mais latente, o sumo mais vitamínico, a dose de morfina mais forte que podemos receber: o amor – traduzido como “A Essência”. Com a participação especial de Maze e com mais um brilhante diamante polido por Serial, esta canção exalta os benefícios da
melhor coisa do mundo que é capaz de funcionar como um bálsamo para o espírito, uma fonte de energia, o melhor combustível para a vida. «O amor é livre, essencial»!
A temática revolucionária continua saliente no discurso dos rimadores. “Não Me Habituo” é o repto para a revolta, para a (re)acção, rumo à evolução. Serial demonstra também que não se resigna com batidas de baixo nível e apresenta nova bomba sonora, na qual os rappers se mostram inconformados perante várias situações da vida. Pela via do activismo mais radical, Mind da Gap mostra novamente a sua fibra e a sua pujança. Intitulando-se “Guerreiros”, marcam no éter a sua posição e mostram sedução pelo poder da luta. Em síntese, artistas destemidos pois contam com a melhor das armas: a música.
“Marcas”, que fecha este disco de Mind da Gap, conta com um
sample fantástico que muitos reconhecerão duma canção clássica das rimas e batidas portuguesas. Trabalhando naturalmente o
sample à sua maneira, imprimindo-lhe o seu cunho pessoal, Serial engendra um instrumental com o poder de fazer levitar uma bigorna. Os rappers cristalizam no
beat a retrospectiva do caminho que tomaram desde há 17 anos. Com frontalidade, pureza e realidade, ouvimos o rabiscar da cosmologia de Mind da Gap, sustentada na complementaridade entre as três individualidades que compõem o colectivo. Um som que fecha em beleza o álbum.

Concluído o périplo por “A Essência”, apraz referir o grande regresso de Mind da Gap. Fiéis a si próprios, espalhando o amor pela cultura Hip Hop, trazendo rimas e batidas de excelente qualidade, o trio pode almejar o melhor dos acolhimentos por parte dos ouvintes. “A Essência” é mais uma demonstração da maturidade artística do trio e consequentemente é mais um álbum que ajudará o rap português a atingir uma maior projecção. Num outro plano, o título deste disco e todo o design fazem igualmente emergir uma ideia de infindável dedicação e amor ao Hip Hop português, por parte de MDG, independentemente do que o futuro possa reservar. Afinal o Hip Hop será sempre um universo com uma esquina por encontrar, com um caminho por mapear, com uma luz por admirar. Serial, Ace e Presto voltam em excelente forma, reforçando a sua condição de guardiões da essência do Hip Hop português.