“Alma&Perfil” de Praso saiu em 2009 e foi justamente considerado por mim aqui no HIPHOPulsação como uma das pérolas do ano do rap nacional. Na verdade, já faz tempo que queria dedicar umas palavras a este trabalho mas a oportunidade não surgia. Hora agora de me vingar e de pagar esta dívida a mim próprio, justificando o porquê deste álbum de Praso ser um extraordinário trabalho. “Alma&Perfil” merece muito mais reconhecimento e atenção por parte dos ouvintes! Ponham-se à escuta!
Mas então o que faz deste disco do rapper de Sines algo tão especial? Bem, as excelentes rimas e os magistrais instrumentais! “Achas pouco?”, questiona Praso na «Intro» e eu sublinho esse paradigma. São raras as vezes em que batidas e letras encaixam tão bem, em que não há uma superioridade dumas sobre as outras. Nos tempos que correm, não nos podemos dar ao luxo de ignorar as palavras de alguém com o perfil e a alma de Praso: “Despejo a minha voz neste rap até ficar rouco/ E se não receber nenhum troco eu não me importo/ Porque o movimento está a ficar oco”. Hiphoppers, embora contrariar a sina vaticinada pelo rapper, de acordo?
O Bilhete de Identidade de Praso está plasmado na faixa “1,86 do céu”, que conta com um viciante instrumental. O refrão é muito bom e acentua o carácter artístico e conscencioso dele: «Prefiro morrer e renascer de novo/ Reinventar-me porque o que eu oiço já houve/ Mantenho os pés assentes no chão / Apesar de estar a 1,86m do céu». Progressiva inventividade enquanto fabricante de arte e realismo e pragmatismo na análise da sua situação. Mas acção é quem mais ordena e mesmo que a vida seja mesquinha, mais vale “sentir dor do que não sentir nada”.
O ruído sinistro da espectacular batida de “Palavras a mais” com a adição das rimas aqui expostas convencem-nos, logo ao terceiro tema, da grande capacidade artística e intelectual de Praso: “E sigo sem caminhos fáceis não tenho pressa/ O trajecto está minado de falsas promessas/ Porque muitas palavras são ditas à toa/ Jogadas como bombas a ver quem se magoa”. Quando as palavras não estão gastas, elas podem ser um sabre afiado.
Traçado o perfil acima, pelo próprio, tacteia-se, ainda por cortesia do mesmo, o seu interior: «A minha alma não se vê/ Sente-se como braille». Esta situação aplica-se igualmente ao instrumental “Blue”. Sem rimas, é a música a falar, a envolver-nos no seu sabor delicado e inspirador, deitando-nos no divã de olhos fechados a relaxar. Mais uma óptima batida de Praso!
«Dizem que não há saída» mas instrumentais e rimas desta envergadura terão obrigatoriamente que desaguar nos ouvidos das pessoas! Sem querer ser repetitivo, a batida merece uma copiosa salva de palmas e as rimas estão no ponto. Foco para o entupimento social: “Essa geração açucarada/ Que não percebe nada, não ensina nada/ Vão contagiando com esses diabetes cerebrais”; para o congestionamento do desenvolvimento humano: «Eles dizem que não há saída/ Mas pedem-te cheques para curar a SIDA»; e para a embolia mental: Porque quando não se persegue o que se ama/ Só o VISA é que desliza/ E a kiza é que lhe excita as mamas.
E que tal seria se o azar tivesse amnésia? Praso agradecia certamente: “Este jogo da vida não me deixa plantar o trevo/ E se a minha mãe não reza e a sorte me despreza/ Eu só espero que o azar me esqueça”. Ora nem mais. Se o azar nos esquecesse a todos, isso é que era bom! «Tenho o azar do meu lado/ E a sorte como embaraço». Já somos dois, Praso, já somos dois... Como homenagem ou forma de incentivar o azar a perder a memória de modo a não chatear quem quer casar-se com a sorte, Praso ensaiou um bom plano: o de fazer um instrumental de nome “Esquecimento” a ver se o azar se rende. Pelo resultado, pode ser que Praso tenha sorte e que o azar goste... E o esqueça. Ao Praso, entenda-se. É que quanto ao instrumental, esqueçam, eles é bom demais para ser ignorado.
“Últimas rimas” é, ao contrário do que se possa pensar, uma loa à criatividade, à reinvenção, à urgência de se fazer o impossível. A fina musicalidade acrescida à voz de Betty no refrão catapultam este som para os principais destaques do disco. E por estar a tocar em assuntos quentes, o que dizer do escaldante “QualquerCoisa e Um pouco DeJazz”? Erotismo, licores a escorrer por lábios, relax intenso, suscitado pelo piano e pela sensualidade que brota de cada poro desta canção. Muito bom!
“Naquele hotel” nada podia correr bem (com excepção para a perícia exibida na feitura do som, claro!) até porque se «os ponteiros encravam no relógio» o resto não haveria de ter um bom fim. Se o saxofone está triste, carpindo mágoas, imagine-se o autor do tema. Adeus mau karma, vamos dar a volta ao texto e imaginar “Se este amor fosse errado”. O lindo instrumental é enriquecido com um delicioso sample de voz e são os violinos a embalar a história. Tudo o que se faz por amor é justificável, só não se toleram é atrasos!
«Eu vou sozinho à procura do horizonte”, é a mensagem que Praso perpassa em “Ponto de fuga (got to move on)”. O desligar do mundo, a valorização de nós mesmos, o poder da superação que todos os dias temos de pôr em funcionamento. Falharemos mais do que acertaremos mas isso é “Sem ressentimentos”. Porque no meio das falhas há coisas lindas que são criadas, formas que resultam. Esse instrumental é magnífico pela liberdade que emana, por recordar o mar, a infinitude do céu, por originar sorrisos, inspirar graças ou, quiçá, por nos fazer suspirar pelo eterno recomeço na busca da alma gémea.
Quantos motivos arranjamos ao longo da vida para viver? Muitos certamente. Mas e se não encontrarmos o verdadeiro sentido, se nos for negado ou adiado? Difícil viver assim. «Fico como sou» é um tema que conta com um sample do tema “Carta Para Ti” de Madredeus e que aborda temáticas como a indefinição, a autenticidade e todas as dúvidas relativas à formação do indivíduo.
“E porque não” mais um instrumental à Praso?! Excelente! Vagabundeia-se aqui pelos rituais do amor à música, do pagamento ao artista, serpenteia-se pelo progresso artístico e pessoal, concluindo-se que o sucesso individual dos artistas resulta na coroação do próprio movimento onde eles se inscrevem, neste caso, o Hip Hop português. Nada mais acertado: o rap português e por inerência todo o Hip Hop enriquece com toda a qualidade demonstrada e oferecida por Praso. “Deus posso ser eu a julgar-te?/ Por que é que não posso fazer da minha vida só arte?”. Fosse eu que mandasse....
“Digo-vos a verdade (como feitiço)” apresenta uma batida fora do comum no universo de Praso, onde ele expõe nesta faixa tudo aquilo que pensa sobre variados assuntos, desde críticas ao pugilato verbal do rap português até à conversa insossa de muitos rappers. Sempre frontal, sem rodeios, Praso lança um feitiço que pretende que seja uma condução à verdade, numa espécie de cruzada contra tudo e contra todos. Algures até intimidades são partilhadas: “Eu faço no quarto Kama Sutra nos beats”.
Chegando ao final desta viagem por “Alma&Perfil”, apercebemo-nos que este disco é especial pelo facto de parecer ter sido feito um pouco à moda antiga do Hip Hop português. Um álbum 100% feito em casa, com muita essência e simplicidade, mas muito elegante, genuíno, cheio de bom gosto, que resulta numa vibrante e clássica peça de arte que ficará na memória do nosso rap. Parece-me um registo com uma actualidade permanente. Por outro lado, convém referir outras qualidades que engrandecem este trabalho, para além dos beats e das rimas, como o flow flutuante de Praso (a Joana Nicolau chama-lhe “flow de seda”), o trabalho gráfico respeitante à capa, a dedicação e extremo cuidado de Praso em todos os pormenores, a rectidão dele, a franqueza... De menos bom, este disco só peca por um ou outro refrão que se repete em demasia, por uma ou outra dureza de rins na tentativa de encaixar umas rimas. De resto, uma obra incontornável na discografia do nosso rap, que inscreve Praso na galeria dos notáveis do Hip Hop português.
Mas então o que faz deste disco do rapper de Sines algo tão especial? Bem, as excelentes rimas e os magistrais instrumentais! “Achas pouco?”, questiona Praso na «Intro» e eu sublinho esse paradigma. São raras as vezes em que batidas e letras encaixam tão bem, em que não há uma superioridade dumas sobre as outras. Nos tempos que correm, não nos podemos dar ao luxo de ignorar as palavras de alguém com o perfil e a alma de Praso: “Despejo a minha voz neste rap até ficar rouco/ E se não receber nenhum troco eu não me importo/ Porque o movimento está a ficar oco”. Hiphoppers, embora contrariar a sina vaticinada pelo rapper, de acordo?
O Bilhete de Identidade de Praso está plasmado na faixa “1,86 do céu”, que conta com um viciante instrumental. O refrão é muito bom e acentua o carácter artístico e conscencioso dele: «Prefiro morrer e renascer de novo/ Reinventar-me porque o que eu oiço já houve/ Mantenho os pés assentes no chão / Apesar de estar a 1,86m do céu». Progressiva inventividade enquanto fabricante de arte e realismo e pragmatismo na análise da sua situação. Mas acção é quem mais ordena e mesmo que a vida seja mesquinha, mais vale “sentir dor do que não sentir nada”.
O ruído sinistro da espectacular batida de “Palavras a mais” com a adição das rimas aqui expostas convencem-nos, logo ao terceiro tema, da grande capacidade artística e intelectual de Praso: “E sigo sem caminhos fáceis não tenho pressa/ O trajecto está minado de falsas promessas/ Porque muitas palavras são ditas à toa/ Jogadas como bombas a ver quem se magoa”. Quando as palavras não estão gastas, elas podem ser um sabre afiado.
Traçado o perfil acima, pelo próprio, tacteia-se, ainda por cortesia do mesmo, o seu interior: «A minha alma não se vê/ Sente-se como braille». Esta situação aplica-se igualmente ao instrumental “Blue”. Sem rimas, é a música a falar, a envolver-nos no seu sabor delicado e inspirador, deitando-nos no divã de olhos fechados a relaxar. Mais uma óptima batida de Praso!
«Dizem que não há saída» mas instrumentais e rimas desta envergadura terão obrigatoriamente que desaguar nos ouvidos das pessoas! Sem querer ser repetitivo, a batida merece uma copiosa salva de palmas e as rimas estão no ponto. Foco para o entupimento social: “Essa geração açucarada/ Que não percebe nada, não ensina nada/ Vão contagiando com esses diabetes cerebrais”; para o congestionamento do desenvolvimento humano: «Eles dizem que não há saída/ Mas pedem-te cheques para curar a SIDA»; e para a embolia mental: Porque quando não se persegue o que se ama/ Só o VISA é que desliza/ E a kiza é que lhe excita as mamas.
E que tal seria se o azar tivesse amnésia? Praso agradecia certamente: “Este jogo da vida não me deixa plantar o trevo/ E se a minha mãe não reza e a sorte me despreza/ Eu só espero que o azar me esqueça”. Ora nem mais. Se o azar nos esquecesse a todos, isso é que era bom! «Tenho o azar do meu lado/ E a sorte como embaraço». Já somos dois, Praso, já somos dois... Como homenagem ou forma de incentivar o azar a perder a memória de modo a não chatear quem quer casar-se com a sorte, Praso ensaiou um bom plano: o de fazer um instrumental de nome “Esquecimento” a ver se o azar se rende. Pelo resultado, pode ser que Praso tenha sorte e que o azar goste... E o esqueça. Ao Praso, entenda-se. É que quanto ao instrumental, esqueçam, eles é bom demais para ser ignorado.
“Últimas rimas” é, ao contrário do que se possa pensar, uma loa à criatividade, à reinvenção, à urgência de se fazer o impossível. A fina musicalidade acrescida à voz de Betty no refrão catapultam este som para os principais destaques do disco. E por estar a tocar em assuntos quentes, o que dizer do escaldante “QualquerCoisa e Um pouco DeJazz”? Erotismo, licores a escorrer por lábios, relax intenso, suscitado pelo piano e pela sensualidade que brota de cada poro desta canção. Muito bom!
“Naquele hotel” nada podia correr bem (com excepção para a perícia exibida na feitura do som, claro!) até porque se «os ponteiros encravam no relógio» o resto não haveria de ter um bom fim. Se o saxofone está triste, carpindo mágoas, imagine-se o autor do tema. Adeus mau karma, vamos dar a volta ao texto e imaginar “Se este amor fosse errado”. O lindo instrumental é enriquecido com um delicioso sample de voz e são os violinos a embalar a história. Tudo o que se faz por amor é justificável, só não se toleram é atrasos!
«Eu vou sozinho à procura do horizonte”, é a mensagem que Praso perpassa em “Ponto de fuga (got to move on)”. O desligar do mundo, a valorização de nós mesmos, o poder da superação que todos os dias temos de pôr em funcionamento. Falharemos mais do que acertaremos mas isso é “Sem ressentimentos”. Porque no meio das falhas há coisas lindas que são criadas, formas que resultam. Esse instrumental é magnífico pela liberdade que emana, por recordar o mar, a infinitude do céu, por originar sorrisos, inspirar graças ou, quiçá, por nos fazer suspirar pelo eterno recomeço na busca da alma gémea.
Quantos motivos arranjamos ao longo da vida para viver? Muitos certamente. Mas e se não encontrarmos o verdadeiro sentido, se nos for negado ou adiado? Difícil viver assim. «Fico como sou» é um tema que conta com um sample do tema “Carta Para Ti” de Madredeus e que aborda temáticas como a indefinição, a autenticidade e todas as dúvidas relativas à formação do indivíduo.
“E porque não” mais um instrumental à Praso?! Excelente! Vagabundeia-se aqui pelos rituais do amor à música, do pagamento ao artista, serpenteia-se pelo progresso artístico e pessoal, concluindo-se que o sucesso individual dos artistas resulta na coroação do próprio movimento onde eles se inscrevem, neste caso, o Hip Hop português. Nada mais acertado: o rap português e por inerência todo o Hip Hop enriquece com toda a qualidade demonstrada e oferecida por Praso. “Deus posso ser eu a julgar-te?/ Por que é que não posso fazer da minha vida só arte?”. Fosse eu que mandasse....
“Digo-vos a verdade (como feitiço)” apresenta uma batida fora do comum no universo de Praso, onde ele expõe nesta faixa tudo aquilo que pensa sobre variados assuntos, desde críticas ao pugilato verbal do rap português até à conversa insossa de muitos rappers. Sempre frontal, sem rodeios, Praso lança um feitiço que pretende que seja uma condução à verdade, numa espécie de cruzada contra tudo e contra todos. Algures até intimidades são partilhadas: “Eu faço no quarto Kama Sutra nos beats”.
Chegando ao final desta viagem por “Alma&Perfil”, apercebemo-nos que este disco é especial pelo facto de parecer ter sido feito um pouco à moda antiga do Hip Hop português. Um álbum 100% feito em casa, com muita essência e simplicidade, mas muito elegante, genuíno, cheio de bom gosto, que resulta numa vibrante e clássica peça de arte que ficará na memória do nosso rap. Parece-me um registo com uma actualidade permanente. Por outro lado, convém referir outras qualidades que engrandecem este trabalho, para além dos beats e das rimas, como o flow flutuante de Praso (a Joana Nicolau chama-lhe “flow de seda”), o trabalho gráfico respeitante à capa, a dedicação e extremo cuidado de Praso em todos os pormenores, a rectidão dele, a franqueza... De menos bom, este disco só peca por um ou outro refrão que se repete em demasia, por uma ou outra dureza de rins na tentativa de encaixar umas rimas. De resto, uma obra incontornável na discografia do nosso rap, que inscreve Praso na galeria dos notáveis do Hip Hop português.
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