segunda-feira, 22 de março de 2010

Em Memória de Snake...



O legado de Snake no rap nacional foi curto mas mesmo assim não deixou ninguém indiferente. Tinha dois sons mais mediáticos, ambos com Sam The Kid, e outros dois mais underground, resultantes de participações nas mixtapes de Regula “Kara Davis Vol.2” e «De Volta ao Serviço», de DJ Cruzfader. Referência ainda para uma pequena introdução que fez num tema de Sam The Kid do seu álbum “Sobre(tudo)”, na faixa intitulada – amarga e vil coincidência - «P.S.P.». Nessa altura, recorde-se, Snake estava preso no Linhó, cumprindo a sua pena e a sua dívida à sociedade.

Apesar desse escasso trabalho no rap, ao nível da gravação de sons, Snake via serem-lhes reconhecidas capacidades no microfone e os ouvintes gostavam do seu estilo. Iniciado por Sam The Kid, que lhe deu uma chance no mundo da música, após o encarceramento no Linhó, Snake conseguiu assim reunir admiradores. A maior prova de grandeza de Snake no rap português é que lhe bastaram quatro sons para conseguir reconhecimento. O empurrão de Sam The Kid terá ajudado muito, claro. Mas a simplicidade, o entusiasmo, a forma de ser dele, terão também contribuído para a formação dessa empatia entre ele e o público.



Prestando tributo a este mártir do rap português, vou viajar pela música que Snake nos deixou. Em “Negociantes”, Snake faz uma espécie de balanço da sua vida depois de ter saído da cadeia. Assaltam-lhe as dúvidas. Que futuro para ele, originário de Chelas e com cadastro? Tudo interrogações levantadas por alguém que buscava um sentido para o resto da sua vida. De que serve a prisão? Para reabilitar gente? Ouvindo as palavras de Snake percebe-se que não. O que se escuta com mais força são os termos “fachada” e sistema. Foste culpado por tentares sobreviver, Snake? “Não, G., fui só mais um sacrificado!”. Ele não renega o seu berço e abertamente narra-nos as características do seu bairro, Chelas, lugar de crime, droga e violência. Todos sabemos que essas enfermidades só abundam em sítios onde as pessoas são negligenciadas e não lhes é dada uma oportunidade digna para sobreviverem.

Seguindo para outro tema, Snake teve uma boa prestação, talvez a sua melhor, em “Dopping” de Sam The Kid. “O que acontece no dia-a-dia é uma coisa chata”, analisa. Instigado a rimar, debruça-se essencialmente sobre os acontecimentos do quotidiano que lhe dizem respeito. Consciente de que o orgulho férreo pode levar-nos a um beco sem saída, Snake prova-nos aqui a sua humildade e simplicidade. Mais adiante, encontraremos ainda vestígios desse calibre como quando diz: “Tens de ser forte e dar o braço a torcer/ Para muitos é fraqueza para mim veio-me fortalecer”. O nativo de Chelas tinha noção perfeita dos erros que cometera enquanto jovem e nunca os negou. Pelo contrário, expunha-os como forma de nunca se esquecer deles e possibilitar um aviso, um conselho, para quem o estivesse a ouvir. Melhor do que palavras minhas para descrever Snake, nesse contexto, é lerem com atenção aquilo que sabiamente disse o próprio. Meditem:

“Apareceram más ideias pela cabeça e eu matei-as
Quando ‘tava a perder tempo a passar por várias cadeias
Da Judite a Caxias, do EPL ao Linhó
Foram noites e dias que tinha que me aguentar só
E não ser uma cabeça perdida
Para poder sair de cabeça erguida, sempre à espera da chance
Sara a tua ferida ou podes perder a tua vida
Que diga o meu sócio Bruno, o Deus o tenha em descanso
É nada por nada, é uma vida marada, entregues à bicharada
Prisioneiros do bairro, encostados ao muralha(?) a planear a fezada
Com a mãe desempregada sem fazer um caralho
Mas não é por isso que hei-de ficar fraco
Luto pela liberdade todos os dias para não ir de saco
Tiro pontos positivos numa situação inversa
Quando um gajo está em baixo basta só uma conversa
Para eu ficar mais forte!”



Bem forte, pelo exemplo e pelo conteúdo! Que esta “situação inversa” de Snake sirva para despertar e alertar a mente dos mais jovens. A revolução também se faz pelas palavras. Mas sem coragem, bravura, espírito de sacrifício e resistência também nada se consegue, e é isso mesmo que Snake exprime na sua participação na mixtape “Kara Davis Vol.2” de Regula.

«Continuo na luta, luta é sobrevivência», ora confiram Snake no mais recente trabalho de DJ Cruzfader:

“Somos puros por dentro esse é o lema da vida
Pros juízes e pros políticos isso não faz sentido
Não sabem nada da vida, não vivem onde eu vivo
Não têm rusgas à toa, não são revistados na rua
Não são pisados na esquadra, eles têm vida boa
(...)
Eu nunca os vi no meu bairro seja de noite ou de dia
Que raio de líderes são esses só fodem a banca aos dealers
Eu não fujo à realidade, eu aperto comigo
E pra nova geração, boy, aperta contigo
Mesmo que estejas na merda ou na banca rota
Eu sei que a força é pouca mas é melhor que a forca”

A revolta e os calos da vida estão atestados em todas as rimas que Snake cuspiu. De facto, só quem não conhece as dificuldades da vida ou as ignora, preferindo assobiar para o ar, é que pode afirmar sem decoro que as pessoas só porque nascem em determinados sítios têm de ser necessariamente más. Existe o preconceito. Há gente cheia de capacidades e de talento que simplesmente por não ser branca ou viver em determinado lugar ninguém lhes dá trabalho, quando estava perfeitamente habilitada para determinados cargos onde poderia representar mais-valias. Pior do que ver este esbanjamento de capitais humanos, é vê-los a terem de enveredar por vidas de ilegalidade e frustração. E muito pior do que isso, é verificar os políticos de meia-tigela que temos que só se preocupam a descer a determinados locais e bairros em campanhas eleitorais. Como Snake bem assinalou, a transformação e a força tem de vir de nós mesmos, do interior de cada um, não se espere a ajuda de políticos ou similares. Como diz Sam The Kid em “P.S.P.”:

«Quanto custa uma vida boa para um inocente?
Não tem culpa de ter nascido sem um ingrediente
Importante pra viver com dois olhos positivos
Sociedade afasta e cria os fugitivos
Vivendo à margem duma vida normal
O chamado marginal numa vida ilegal
O fundamental é saber de onde é que vem a causa
Porque ninguém anda nesta merda pra mandar pausa»

Snake não era dos MC’s mais talentosos que Portugal tinha, nem era, como é fácil constatar, daqueles que mais gravava música. Todavia, Snake era um de nós. Vivia e representava a cultura Hip Hop, nutria por ela uma grande paixão e esta respondeu em peso na altura de o homenagear pelo desfecho trágico que foi a sua morte. Tudo o que Snake deixou será relembrado com grande respeito por todos os integrantes do movimento Hip Hop português, disso tenho a certeza. Cumpre-se aqui também a minha homenagem à pessoa e ao rapper Snake. Que estejas num sítio melhor do que este que deixaste!

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