segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Suarez - Blue Note (Crítica)

Emergiu no Alentejo o primeiro disco de rap acústico português. Suarez, MC e produtor nascido em Beja, vestiu a bata de cientista e fez de “Visão de um Estranho” a sua cobaia. Numa iniciativa que não mudará o Mundo mas que pode muito bem transformar o panorama musical nacional (nomeadamente o rap), pegou no seu primeiro álbum, datado de 2007, apagou samples, livrou-se dos loops, desalinhou programações, enfim, dissolveu quase todas as partículas que compunham as suas músicas. O passo seguinte foi agrupar uma gama de músicos (bons músicos, diga-se) que manipulassem uma série de instrumentos vitais para o pretérito. Desde o contra-baixo à bateria, ou do trompete à guitarra (claro), todos eles foram bastante espremidos, de forma a que cada um, nota a nota, reconstruísse a obra imortalizada há dois anos por Suarez. Numa astuta operação de estética, cerca de uma dezena de faixas surgem não só com uma nova aparência, como também carregam consigo uma outra alma. Os sons que no primeiro álbum soavam rude, transparecem agora harmonia. As batidas que antes nos compeliam a agitar incessantemente a cabeça, baloiçam-nos o pescoço suavemente. “Blue Note” é um formato acústico que cheira a Soul, reflete Blues, respira Country (também!) e transpira rap.

É nos moldes mais básicos, acusticamente falando, que Suarez se inicia nesta experiência aventuresca. “Sonhos (Há Muitos)” e, sussurra o rapper, não os devemos concretizar. “Vive com eles, luta com eles”, numa clara nota introdutória de esperança e positivismo. No entanto, com a segunda faixa, rapidamente sopra uma aragem do sul dos EUA, e com ela chega a descrença e pessimismo. Que na verdade é o reflexo da sociedade dos nossos dias. A letra mantém-se actual (e não parece que nos próximos tempos se torne antiquada). Quem não “vive o dia à procura de uma luz”, com “sacrifício atrás de outro mas nada já seduz”? Porque cada vez mais “o que conta é a influência, gritamos e apelamos mas já falta paciência”. As palavras de Suarez escoam a tristeza que carrega por olhar em redor e ver um povo que não faz por honrar o esforço despendido em tempos pela glória numa revolução. Acontecimento que pertence a uma “história onde só já resta o brazão”. No final de contas, “a gente luta e conseguimos “2006 Kg de Cultura”, atingindo a amargura”. Em 2007 ou em 2009, estamos perante um enorme som.

Politicamente incorrecto, liricamente arrebatador e com um flow que, de tão ágil, coerente e certeiro, fortalece a sua atitude convicta e realista, Suarez esgrime argumentos que exprimem o seu valor, quer seja numa batida suja ou numa melodia mais suave. Como os sons que se seguem. “Preciso dum Motivo” (que teve direito a vídeo no primeiro álbum) apresenta-se numa linha diferente da original (como é óbvio), mas mantém a costela ténue porque a letra assim a obriga. As sílabas fluem a cada dedo que passa pelas cordas da guitarra, a percussão complementa-se e faz por complementar o ritmo. Sem dar-mos por isso, embarcamos numa onda harmoniosa que nos embala e carrega sem rumo. Numa sequência nada entediante, deixamo-nos levar pelas palavras sinceras, profundas e intimistas de Suarez, escutando por detrás as duas vozes femininas baterem ao de leve nos ouvidos. Luisa Casola e Helena Sardica são os nomes, fascinantes e sublimes são os adjectivos. Se há dois anos Suarez procurava nesta faixa um motivo que lhe motivasse a vida, hoje poderá dizer que o encontrou em “Blue Note”, porque, de certeza, que a sua alma estará bem viva. E se há um par de anos esta faixa cotou-se como uma das minhas eleitas, hoje reforço esse sentimento de admiração.

E como pode uma alma não ficar estarrecida quando ouve a composição seguinte? Falo do “Álbum de Fotografias”, que não foi, nem poderia ser, esquecido. Recordam-se os tempos em que Suarez, também ele um puto, partilhava as aulas com outros miúdos, “cromos” outrora, homens nos dias que correm. No início da carreira de rapper (adolescente), Suarez remava com vários parceiros (Pika, MCM, Ró, Camate e NT) no mesmo “Movimento Clandestino”, que testemunhou os primeiros concertos, as primeiras palmas, certamente. O momento é envolvente, doce e especial. Tal como um álbum de fotos palpável, este também nos deixa aquele bichinho que nos leva a pegar nele de tempos em tempos. A voz de Fábio Dias, particularmente, acaba por o elevar a um nível que, sinceramente, imaginava inatingível num registo deste género. Simplesmente fantástica toda a composição e arranjos desta canção!

Não esquecendo todos aqueles que, de uma maneira ou de outra, influenciaram a sua forma de estar, Suarez volta a registar o seu “Obrigado (Outra Vez)”. O ambiente sinistro que o próprio empreendera na versão original desapareceu (pelo menos não está tão agressivo), mas a letra e a mensagem política e socialmente interventiva não. Por isso, a mira continua apontada a editoras, promotoras, fingidos, interesseiros, verdadeiros que nunca o apoiam, partidos, aos que receberam a sua ajuda e retribuiram com nada, enfim, a tudo e todos que fazem (ou fizeram) parte da sua vida, que acabaram por o fortalecer ainda mais, Suarez agradece (outra vez). O MC de Beja é um observador nato, um relatador de histórias e de comportamentos bem reais. “(...) e a democracia dele (país) vive dependente de um sistema capital parasita, “Poligamia de Bens” não é para quem necessita”. Nesta faixa é o quotidiano que inspira Suarez. O dia a dia de uma vida que ninguém escolheu, “apesar de sermos os nossos condutores dos nossos berços”. Um trompete, acarinhado por mãos que o bem tratam, enternece a música, que carrega um refrão vocalmente bem pensado e ainda melhor cantado.

Para quem é músico, que corre o país (ou por vezes apenas metade dele) sem grandes posses, actua em espaços onde muitas vezes os caches prometidos desaparecem, mas que mesmo assim continua a subir ao palco por amor ao que faz e respeito a quem o ouve, então vai-se identificar com a malha número 7. “Somos emigrantes musicais em "Movimentos Migratórios” resume praticamente tudo. O “tudo” que Suarez relata são as vivências e histórias que muitos artistas retratam naqueles documentários de bastidores. Uma letra sentida, liricamente perfeita e um hino ao rap. Sim, porque isto continua a ser rap, onde uma guitarra marca o compasso, onde não faltam os arranhões de Pass One, e um Trompete que volta a fazer estragos…

Seguem-se dois momentos díspares (curiosamente). “Sangue Novo (Pt.I)” e “Sangue Novo (Pt.II)”. No primeiro, as rimas de Suarez ausentam-se, deixando os holofotes iluminarem as cordas vocais de Pedro Bicas. No segundo, as palavras do rapper são cuspidas a todo gás. Se na parte I a melodia propicia a cantoria sobre a geração rasca contemporânea, na parte II a guitarra espicaça os versos que o alentejano já direcionara contra o governo e políticos nacionais que gostam de queimar o povo: “Somos boicotados mas o rap é o meu partido/As nossas medidas são formatos cds/assembleias são concertos e quem escolhe são vocês”
Antes de a cassete acabar, fita ainda para um encontro a três: Luís Soares, Suarez e a guitarra. Num momento largamente introspectivo, Luís, o homem, debita palavras amargas, que transbordam mágoa, tristeza, e que encontram em Suarez, o rapper, o seu amparo. Em "O Meu Nome é Luís", não podia ter sido mais honesto. Nos derradeiros quarenta e cinco segundos, uma mensagem idêntica à introdução, onde se diz que “Convicções (Há Muitas)” e “o mais cego é aquele que não quer ver… do que aquele que não vê mesmo”.

“Blue Note” é um disco recheado de surpresas, até para quem já ouviu rap acústico. Por detrás das rimas agridoces de Suarez acomodam-se melodias envolventes. O desenrolar das faixas será sempre um exercício agradável, e nada penoso. Sentimentalista, espectador e ouvinte atento na vida, activista. Umas vezes corrosivo, outras vezes pungente, completamente à vontade na escrita, super-à-vontade no flow, eis o rapper Suarez, que agora dá um passo que ninguém ousou dar em terras lusas. Depois do primeiro trabalho “Visão de Um Estranho“ ter sido inalado e aclamado por muita gente, haverá quem considere “Blue Note” uma estranha visão de rap. Mas é preciso recordar que o Hip Hop sempre se serviu de outros estilos. Por isso, “Blue Note” não demorará a entranhar-se, assim suave, suavemente...

Desde hoje, "Blue Note" está disponível para descarga e consumo completamente gratuito neste sítio: http://www.suarezbluenote.com/

3 comentários:

  1. Quem é que faz um disco como este para download gratuito?? É o primeiro disco de rap acústico na tuga, é uma revolução!
    Parabéns ao Suarez, aos músicos que estiveram com eles e ao Hip Hopulsação pela crítica.

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  2. Compreende-se a posição do Suarez, é uma situação que certamente vamos ver acontecer mais vezes.

    Estão todos de parabéns, sem dúvida ;D


    Cumprimentos!

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  3. É SIMPLESMENTE LINDO!

    Um magnífico trabalho entre bons músicos e amigos, que se unem não em um género músical, mas sim para fazer música, boa música.
    Sim, fazer música!
    Independentemente do genero ou gostos alheios...
    Axo que qualquer músico que pare para ouvir este trabalho saberá dar-lhe o devido valor sem olhar para estilos, pois aqui, estão unidos vários eslilos e daí fez-me "Blue Note".
    O trabalho de pessoas que amam a música, o abraçar de um projecto belíssimo que soa bem a qualquer ouvido, que não deixará ninguém que ouça indiferente a estas melodias e letras arrebatadoras.
    Uma fusão de prazer com muito trabalho, de amor pela música com a inteligência de cada palavra!

    Muitos parabens a todos os que colaboraram para que este trabalho chegasse aos nossos ouvidos!!!
    Parabens em especial ao meu mano do coração Luís Soares, que é e sempre foi um amante da música e principalmente do hip hop.

    Este Sr. Suarez no 5º ano de escola (com 10 anos de idade) fez-me cantar com ele "Lôra Burra" de Gabriel o Pensador numa aula qualquer em que nos diziam para cantar a frente de todos da turma, porque sou brasileira e nessa altura tinha saído esse album do artista de Rap.
    Axam normal? com 10 anos? Eu sabia a letra mas não queria contar a frente dos outros... mas o Luís lá me convenceu e ajudou na performance!
    LOL
    Ele desde sempre, desde que o conheço, tem um carinho e dedicação por esta área únicos e merece todo o mérito e reconhecimento pelo trabalho que tem feito e faz, por amor!
    É um lutador e muito trabalhador, o meu irmão Fábio Dias (colaborador deste projecto) que o diga, pois até hoje depois de trabalhar com o Luís diz: "Aquele Soares é de +, imparável, dedicado e contagia quem com ele trabalha".
    Por isso e muito mais, aqui ficam os meus parabens, mais umas vez, pelo lindo trabalho e o desejo de um futuro próspero no mundo da música a quem o merece!

    Kisses da Sté.**
    One Love!

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