segunda-feira, 8 de junho de 2009

Se eles são incendiários... (Parte III)


Escaldante

Sagas passeou-se lindamente em cima do instrumental e abrilhantou sem margem para dúvidas esta mixtape. Ora rappando ora canto, quer em crioulo quer em português, Sagas mostrou a sua valia, transmitindo a maturidade e a qualidade que atingiu no seio do Hip Hop lusitano.

Logo no início, Blasph revela que a sua participação será bombástica, pelo facto de referir Médio Oriente. Só isso é meio caminho andado para se pulsar os tremores que bombas provocam e sentir-se o cheiro a queimado. Mas Blasph não faz só isso. Ou seja, construiu habilmente uma história, metendo-se na pele de um bombista. Blasph faz o relato dos momentos que antecedem a sua auto-explosão. Se o assunto da mixtape é o elogio da destruição, Blasph instituiu-se da arte e do engenho para fazer um tema que aborda a realidade dos bombistas-suicidas. É cheio de coragem, de fé, de força, que Blasph tal como qualquer bombista se entrega à sua causa, no seu caso a de rimar. E Blasph honra plenamente a sua missão, construindo seguramente algumas das melhores rimas desta mixtape.

Pródigo, tal como Blasph, artilhou-se completamente para triunfar na missão. Assumiu-se como soldado e disposto a pôr quem quer que seja “a mijar morfina”, Pródigo não tem problemas em referir que a guerra é uma paragem da racionalidade. Mais, faz questão de focar o drama das pessoas inocentes, com especial incidência no caso das crianças. Ora vítimas ora contadoras do tempo que falta para se tornarem a ignição da destruição alheia. Pródigo inteligentemente reforça a banalização da guerra, da violência, da martirização. Já se sucedem acontecimentos que não chocam porque são frequentes. O repúdio e a contestação relativamente a determinadas situações são menorizados. Já ninguém liga, ninguém se importa. Interioriza-se que é normal e que nada pode ser feito. Pródigo mete o dedo na ferida: a resolução dos conflitos faz-se pela lei da bomba. Deliciosa a visão de Pródigo que concebe que se o Diabo veste Prada, nesta moda belicista e de malfeitoria, então os Anjos já inovaram no guarda-roupa e têm seguramente os seus trapinhos a condizer com C-4. Pródigo relata uma página de tantas outras que apelida de “macabras”. E se a chuva não apaga o lume do ódio, então muitas outras regiões navegarão no “vale de lágrimas” que Pródigo vislumbra em Israel e no Líbano. Se só Blasph e Pródigo tivessem participado nesta canção ela seria automaticamente considerada a melhor de todas as que integram a mixtape. Scratch queimou-os.

Capicua foi talvez a grande surpresa desta mixtape. Num elenco onde figuram tantos nomes de proa, poucos esperariam que Capicua conseguisse alastrar muito a sua chama. Nada mais enganador! Capicua conseguiu fazer um dos melhores temas, fruto de uma grande entrega e energia no mic. A fluência e a boa-disposição que perpassa para os nossos ouvidos foram garantes importantes para nos prenderem às rimas de Capicua. A “estrófe-molotov” caiu que nem ginjas. Num ambiente de certo modo pesado e hostil, Capicua apresentou-se divertida e com isso conseguiu certamente atrair todos aqueles que ouviram a canção. Capicua veio para esta mixtape, parece-me, como alguns daqueles manifestantes vão contestar as cimeiras do G-8 ou G-20. Participou fundamentalmente para se divertir e mandar a sua “estrófe-molotov”, importando-se pouco com a causa da iniciativa. Parece-me que gozou à brava. A todos os pirómanos que não conseguem produzir os “beat-dinamite” resta-lhes a anuência e o envio dos seus ficheiros para a reciclagem, adverte Capicua. E ela se não fez a linha mais abusada (no bom sentido) da mixtape parem imediatamente de ler o que escrevo: “Já não compito o meu sonho(*) fintou o Deco”. Fantástico! A pronúncia de Capicua vinca-lhe ainda mais as suas qualidades e diferencia-a. Dá-nos “lição de pirotécnica”, sem ter que necessariamente foguear alguém em particular e sem ter que se socorrer do insulto fácil e de palavras broncas. A cena de Capicua é tão quente que em pouco tempo se percebe que é uma questão de segundos para que o alarme de incêndio ecoe na sua métrica. Deixa arder, Capi!

Se queriam que se botasse fogo, então teriam de chamar Eva. Ela não rappa, cospe lume, qual boca de dragão. Eva no final da gravação deste tema deixou por certo o microfone em brasas, assim como as orelhas de alguns ferveram! Eva mais uma vez rimou em frente ao espelho, demonstrando toda a sua apetência para a exaltação do ego e para a batalha vocabular. Sim, mais uma vez, faz-se uma viagem ao pensamento de Eva, com as mesmas doses de dureza e crueza verbal. Eva admite que está no passeio dos ilustres do rap português por já ter perpetrado ataques vocabulares mais violentos que uma qualquer chaimite de guerra. Com uma agressividade sem limites, dizima quaisquer rimadores que se lhe atravessem no caminho. Sem rival à altura nesta batalha de estilos, Eva dá-se ao luxo de sugerir a colocação de uma pausa no rap para que a consigam alcançar. E isso de “pombas na garganta” é apenas um bluff de Eva, pois o arsenal dela parece ser interminável. Eva acredita já ser um peso-pesado no Hip Hop nacional, por isso aconselha veementemente Dama Bete a encorpar as suas rimas. E se havia dúvidas, Eva esclarece: “venho só e forte para queimar os rappers da tuga”. Incendiários? Pois. Sem papas na língua, “mais quente que o fogo” e para isso nem precisa de pôr um pé na rua! Qualquer contacto com Eva é favor carregar no “rec” e dizer o que lhe vai na alma. Ela certamente responderá cuspindo lume. Ou não fosse ela Eva, a dracena de Benfica.

Conclusão:

A “Incendiários Mixtape” não trouxe a qualidade que se esperaria dado o elenco que se apresentava. Esteve longe do patamar de valia sentida noutros álbuns de rap português. A este défice, juntou-se ainda o móbil do trabalho. O formato mixtape leva sempre a que alguns mc’s ensaiem novas abordagens e apresentem uma menor exigência relativamente ao produto final. Ainda assim, houve gente que se empenhou e fez grandes rimas. Porém, em virtude da presença de alguns rappers importantes da nossa praça, aguardava-se um álbum bem mais sólido, ambicioso e fundamentalmente bem mais adulto.
(*) Onde está "sonho" deveria estar, na verdade, swing.

5 comentários:

  1. esta foi das melhores criticas que alguma vez ja li na tuga sobre qualquer trabalho de hiphop. Tens o melhor blog de hiphop nacional. És inteligente, critico, imparcial, analisas sem fundamentalismos. Fantastico, tou impressionada com esta critica. Serei tua seguidora fiel. Continua e já sabes que agora virá também quem te contestará porque principalmente os mc's não sabem receber criticas aos seus trabalhos. Julgam-se todos perfeitos. Mas quero que sejes resistente e continues assim sempre, firme, independente e critico. o HipHop precisa de ti.

    Beijos. Ana Jorge.

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  2. "fundamentalmente bem mais adulto". É isto.

    Excelente crítica. Oxalá mais gente pensasse o hip hop como se fez nesta crítica.

    Um grande abraço

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  3. Olá, Ana Jorge! Bem, fiquei naturalmente embasbacado com o teu comentário... Obrigado pelas palavras de apoio. Quanto à crítica foi a primeira que fiz, portanto, acho que foi sorte de principiante :) Tanto eu como o Sempei ficamos agradecidos por nos visitares e contamos, se entenderes, com os teus comentários. É sempre bom recebermos feedback, independentemente de ser bom ou mau. Quanto aos teus conselhos, terei-os sempre em conta certamente. Manuel António Pina diz que não basta escrevermos, temos de estar dispostos a defendermos o que escrevemos. Estou perfeitamente em sintonia com isso.

    O Hip Hop precisa de todos! Beijinhos, Ana ;)

    Caro Francisco, obrigado pelo comentário também. Estou certo de que haverá mais gente a pensar o Hip Hop como eu, mas se calhar essas pessoas simplesmente não partilham esse pensamento com os outros. Acho que é apenas isso.

    Um abraço.

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  4. Mt boa a critica...construtiva...!

    Um pequeno reparozinho...o que percebo da rima da Capicua é: "O meu SWING fintou o deco", ao contrário de sonho. (Swing a rappar...a forma de embalo...)


    Gosto bastante de visitar o vosso blog, continuem
    assim dedicados e simpáticos:)

    Cumps

    Miguel*

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  5. Olá, Miguel!

    Sobre a Capicua, sabes que mais? Tens razão! :D Nunca me tinha ocorrido, ao escutá-la, a palavra "swing". Mas agora que li o teu comentário, fui ouvir de novo e... "swing"! :D

    Sempre me pareceu "sonho", até com o Sempei já falei desta linha e ele também entendeu como "sonho". No entanto, o sentido da linha mantém-se quer com uma ou outra palavra. O verso está mesmo poderoso!

    Resta-me agradecer o teu comentário e o oportuno reparo, já que eu estava errado e a induzir quem quer que lesse o texto nesse mesmo erro. :P

    Serás sempre bem-vindo aqui! ;)

    Grande abraço!

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